Entre 110 a.C. e 48 a.C., Colleen McCullough revela-nos, com uma clareza
psicológica notável, os homens e as mulheres que haviam por detrás dos
heróis: o seu rosto humano em contraste com o retrato que a lenda nos
deixou.
Em César, assistimos à queda de um mito (Pompeu, O Grande) e ao
nascimento de outro (César, O Divino). A luta pelo título de O Primeiro
Homem de Roma encontra neles dois protagonistas insuperáveis.
No entanto, a vida é implacável, até mesmo, ou sobretudo, para os
heróis. Pompeu morre miseravelmente vítima de uma cilada numa praia do
Egipto e, quatro anos mais tarde, César morrerá às mãos do seu protegido
Bruto e de mais vinte e dois conspiradores.
Com César, a República chega ao fim, mas a luta pelo título de O Primeiro Homem de Roma continuará e não só em Roma.
De facto, esta obra em cinco volumes não nos proporciona apenas uma visão de Roma, pois ilumina toda a história da humanidade.
Roma, afinal, não está nada longe de nós.
Há quem diga que não há amor como o primeiro, nem paixões como as adolescentes. Não querendo reduzir a complexidade das relações humanas a uma leitura, com os livros acontece um pouco o mesmo. Quando entramos no mundo fantástico das letras, conhecemos um livro que nos converte. Seguem-se vários outros, todos diferentes entre si, todos capazes de nos deixar acordados noite dentro com o coração acelerado. Até que um dia já lemos demasiado: torna-se mais difícil surpreendermo-nos, tornamo-nos mais críticos. Perseguimos páginas à procura daquele entusiasmo que outrora sentíamos com as reviravoltas que hoje já antecipamos. Os livros continuam excelentes, continuamos a não ver onde colocamos os pés apenas para acabar o capítulo, mas nós crescemos. Já não somos virgens.
Eu não acredito que seja assim. Acho que as paixões adolescentes não têm de ser as mais intensas. É possível viver um grande, grande amor a qualquer idade. Porque, de vez em quando, encontramos alguém que talvez, esperamos, seja o amor da nossa vida. E com trinta, cinquenta ou setenta anos, voltamo-nos a sentir adolescentes de coração cheio. Com os livros, acontece um pouco o mesmo também. De vez em quando, lá encontramos um livro que nos arrebata e desafia aquela lista de livros preferidos que mantemos há anos.
Tenho lido a série histórica O Primeiro Homem de Roma de Colleen McCullough com alguma reverência. Tenho adorado por todos os motivos possíveis. Acredito que não haja no mundo uma série de ficção histórica tão completa quanto esta. O detalhe histórico é impressionante, a um nível académico. A escrita é fabulosa: directa, sem demasiados embelezamentos, mas tão nítida e aprazível que raramente nos aborrece em milhares de páginas. A história, apesar de predominantemente política, agarra-nos, ao jeito de uma novela repleta de intrigas mas bem real.
Assim tem sido nos quatro primeiros livros de uma série composta por sete. Nos dois primeiros, conhecemos Caio Mário e Cornélio Sila, ambos dois dos maiores generais da República Romana, responsáveis por uma série de acontecimentos marcantes em Roma, que influenciaram drasticamente a sua sociedade. Nos terceiro e quarto livros, surge Pompeu Magno, outro grande comandante cuja carreira vai influenciar a queda da República Romana. Mas há uma personagem transversal a toda a série, que acompanhamos desde o nascimento à sua morte, que é no fim de contas o nosso protagonista: Júlio César, o ditador, o génio romano talvez mais famoso de sempre.
Chegamos, assim, ao quinto livro, o livro onde César se ergue acima de tudo e todos e concretiza o destino que hoje conhecemos.
E César, quinto livro da série, excede todas as expectativas. Uma série que já se tinha revelado uma leitura extraordinária, atinge em César o seu auge, um pouco como a sua personagem principal. Pela primeira vez em anos, agarrei-me a um livro que nem um louco, capaz de ficar acordado até os olhos me arderem, capaz de discretamente abrir o livro em qualquer ocasião só para dar aquela espreitadela e saber o que vai acontecer. César não é apenas um livro de emoções fortes, não tem dramas nem reviravoltas que desafiam uma Guerra dos Tronos, mas é um livro de decisões fortes, um registo dos acontecimentos que mudaram a História Mundial e sem os quais o nosso mundo seria muito diferente.
E reconheço, este era talvez o livro para o qual menos expectativas tinha. É um livro sobretudo bélico: primeiro, as batalhas de César na Gália, e depois as batalhas de César contra Pompeu e os boni. Eu aborreço-me com cenas de batalha. Prefiro a intriga política, a batalha de palavras, as conspirações dentro do Senado, em vez dos cercos a cidades, as perseguições e os encontros que resultam em batalhas colossais. Sou um Cícero, não um Pompeu (uma piada privada para quem leu o livro ou conhece a História da Roma Antiga). Mesmo assim, este foi sem dúvida o livro que mais gostei de toda a série até agora. Porquê? Talvez precisamente pela força de carácter que César transmite. Ou talvez porque o livro representa alguns dos momentos mais icónicos da História Mundial, como a travessia do rio Rubicão. De qualquer forma, não larguei o livro até o acabar. E apesar de querer começar a ler os seguintes da mesma série, está a custar avançar e colocar este de lado.
Uma breve nota para a escritora: escrito por Colleen McCullough, autora do romance Pássaros Feridos, seria de esperar uma escrita mais emocional (porque por alguma razão esperamos sempre uma perspectiva mais ternurenta de escritoras femininas). Tal não é o caso: é sim, uma escrita emocional na medida em que constrói personagens muito fortes e sérias. Mas é, isso mesmo, uma escrita muito séria, muito racional na sua narração. Pode ser um pouco estranho em bastantes passagens, tanto as que envolvem momentos mais pessoais das personagens (onde a escritora não dá espaço para uma prosa mais floreada e apaixonada) como nas descrições que aproximam o livro de uma tese académica sobre Roma. Mas é isto um problema? Não de todo. A verdade é que na sua escrita sem rodeios, McCullough equilibra seriedade e emoção, personagens muito fortes e descrição história completa. Para um livro que se compromete a descrever da forma mais realista possível a verdadeira história de César e da queda da República Romana, apenas uma escrita assim tão racional impede que o livro se torne enfadonho e ainda mais longo.
Depois de ler um livro como este, fica a tristeza de saber que dificilmente voltarei a encontrar uma série histórica tão boa quanto O Primeiro Homem de Roma. Não existem livros tão completos quanto estes. Quase todos os romances históricos são antes de mais romances, ficções que inventam personagens ou distorcem acontecimentos para apelar mais ao leitor ou moldar a História à sua história. Colleen McCullough não cai nessa tentação. Acredito que sejam extremamente raros os momentos que ela escreve que ela não tem a certeza que aconteceram (de facto, o trabalho de investigação que McCullough dedicou a esta série valeu-lhe um doutoramento honoris causa em Letras).
Não há outra forma de o dizer: peguem nesta série. Se se consideram bons leitores, leitores que não gostam de deixar escapar grandes obras, leiam esta. Mas leiam a série desde o primeiro livro, porque vale a pena acompanhar a progressão e crescimento das personagens. Apesar de os livros serem independentes entre si, apenas uma leitura que acompanhe a cronologia dos acontecimentos permite notar o seu impacto.
Infelizmente, não será fácil seguir este conselho. Esta série já não se encontra publicada em Portugal. A editora Difel encarregou-se de publicar os sete livros, mas há vários anos que fechou portas e levou consigo várias obras muitíssimo boas, incluindo estes livros. A editora Bertrand editou entretanto o primeiro livro da série, intitulado O Primeiro Homem de Roma, mas não há qualquer indicação que venham a publicar os restantes seis livros. Poderão encontrar alguns livros usados à venda, em alfarrabistas ou plataformas online... Mas é muito, muito difícil completar a colecção. Os três primeiros livros são relativamente fáceis de encontrar em segunda mão. O sétimo livro só encontrei uma vez. Demorei anos a reunir todos os livros. É uma situação muito triste. Esta é uma obra estrondosa cujos direitos estão nas mãos de uma editora que não é conhecida por se comprometer em publicar obras tão extensas.
Deixo aqui o meu apelo à Bertrand para promover esta grande obra (e não só, que ficaram para trás no nosso país). No que depender de mim, gostaria muito de apoiar qualquer editora a mostrar esta obra aos leitores portugueses.
Sem comentários:
Enviar um comentário