segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes

Joaquim Soeiro Pereira Gomes nasceu em 1910, em Gestaço, distrito do Porto. Tirou o curso de regente agrícola em Coimbra e partiu para África nos fins da década de 1930. Trabalhou durante algum tempo na Companhia do Catumbela, mas, descontente com as condições de trabalho naquela província, regressou à metrópole em 1931. Casou-se nesse ano com a compositora Manuela Câncio Reis.
Aos 22 anos fixou-se em Alhandra, como empregado de escritório, na Fábrica de Cimentos Tejo. Foi, naquela vila, um dos grandes impulsionadores do movimento cultural entre a população operária, organizando e dirigindo cursos de ginástica, colaborando na montagem de bibliotecas particulares, realizando conferências sobre temas culturais e desportivos e contribuindo largamente para a construção duma piscina popular, em cuja obra trabalhou como operário.
Iniciou a sua carreira de escritor em 1935, mas só em 1939 apareceram as suas primeiras crónicas nas páginas de O Diabo, semanário de grande prestígio na época, e em 1940 escreveu Esteiros, publicado em Novembro de 1941. Sabe-se que em 1944 terminou a redacção de Engrenagem, tendo os últimos seis anos da sua vida sido repletos de percalços e de incertezas. Faleceu em 7 de Dezembro de 1949, em condições dramáticas, vitimado por uma doença incurável.
As obras de Soeiro Pereira Fomes estão reunidas no volume "Obras Completas".
Esteiros, o último romance publicado em vida do autor, é um daqueles livros que bastam para consagrar um escritor. É que este romance dos "filhos dos homens que nunca foram meninos", esta história dos rapazitos miseráveis dos esteiros do Tejo, é, antes de mais, uma obra que Pereira Gomes escreveu com amor. Não foi por acaso que o editor a escolheu para iniciar uma nova colecção que se pretende seja lida por todos e onde se procurará reunir obras de interesse universal.



Esteiros foi um dos primeiros livros "a sério" que li. Nunca mais me esqueci dele. Apesar dos protagonistas serem apenas crianças, e apesar do tom da escrita a que eu chamo "voz de menino em caneta de adulto", é-me difícil encarar este livro como Literatura Juvenil. Aliás, porque não são "apenas" crianças: são "homens que nunca foram meninos", frase icónica, a quem o autor dedica esta história de jovens trabalhadores, das suas duras condições de vida nas margens do Tejo, das dificuldades em sobreviver numa sociedade de extremos onde os ricos têm tudo e os pobres absolutamente nada. É demasiado duro, trágico e poético para categorizá-lo com qualquer outra "etiqueta" que não seja "Grandes Clássicos Portugueses".

Soeiro Pereira Gomes foi um militante comunista na primeira metade do séc. XX e um dos primeiros escritores neo-realistas portugueses (género caracterizado por uma voz esquerdista, pela denúncia das desigualdades sociais e a luta das classes na ficção), assinando com Esteiros a sua maior obra. Não caiam, contudo, no erro de o julgar pela sua actividade política ou somente pela história que ele narra: a sua capacidade literária excede a de muitos escritores vulgares. Talvez porque, de facto, escreve com o coração. Pereira Gomes tem o dom de descrever de forma muito simples e emocionada os destinos dos homens nos esteiros do Tejo. Desde as paisagens do Ribatejo aos corações das crianças trabalhadoras, o escritor expõe a ternura triste das vidas de Maquineta, Gaitinhas, Sagui, Guineto, e muitos outros, entre os trabalhos nos telhais, as traquinices nas horas vagas, e as muitas, demasiadas tragédias que marcam acima de tudo esta história, capítulo após capítulo.
No meio de uma leitura de muitas peripécias, é mesmo a escrita preocupada, carinhosa, atenta e bela que fica na memória.


Não é, de facto, por acaso que esta obra abriu a já famosa colecção de livros de bolso da Europa-América. É um clássico português que, a meu ver, não tem a atenção que merece. Não é um livro de 500 páginas, não vendeu 100 000 exemplares no primeiro mês, mas está maravilhosamente bem escrito e é impossível ficar imune à realidade destas crianças operárias. Se a obra parece ter ficado esquecida nas escolas e nas estantes dos portugueses, convido todos os leitores a pegar no livro de livre vontade e deixarem-se ser marcados por um escritor que prometia ser maior ainda do que foi - tivesse tido uma vida mais longa, ou talvez mais dedicada às letras e menos à luta por uma melhor sociedade.


1 comentário:

Argos disse...

Olá,

Li duas vezes esta obra. A primeira, em casa da avó foi talvez demasiado cedo. Um menino a ler as historias de meninos que nunca o foram.
Em cada página demasiados sentimentos, demasiadas perguntas sem respostas.muita inquietação.
A segunda vez, em adulto, descobri outro livro!

Abraço

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