Filho do administrador do jardim zoológico de Pondicherry, na Índia, Pi Patel possui um conhecimento enciclopédico sobre animais e uma visão da vida muito peculiar. Quando Pi tem dezasseis anos, a família emigra para a América do Norte num navio cargueiro juntamente com os habitantes do zoo. Porém, o navio afunda-se e Pi vê-se na imensidão do Pacífico, a bordo de um salva-vidas, acompanhado de uma hiena, um orangotango, uma zebra ferida e um tigre de Bengala. Já considerado uma das mais extraordinárias criações literárias da última década, A Vida de Pi é um livro mágico, onde o real e absurdo se misturam numa história intemporal. Agora, este bestseller de enorme sucesso mundial, cuja adaptação cinematográfica foi durante muito tempo considerada uma impossibilidade, chega finalmente agora ao grande ecrã, pela mão do realizador Ang Lee.
Ora aqui está algo que nunca me aconteceu: sinto-me culpado. Sinto-me teimoso, e sinto que fui muito injusto com este livro desde o início.
Sinto que este livro me deu uma lição de vida, daquelas que nos fazem baixar as orelhas porque fomos orgulhosos demais e pensávamos que sabíamos melhor. Nunca acabei uma leitura a sentir-me assim.
E não, não tem nada a ver com "carpe diem" ou "acredita no Destino". Tem a ver com "lê até ao fim antes de te armares em esperto".
A história começa com Pi a apresentar-se. É filho do dono de um jardim zoológico na Índia, e bastantes páginas são autênticas dissertações sobre comportamento animal.
Mais tarde, descobre as manias e histórias de cada religião e decide ser hindu, muçulmano e cristão ao mesmo tempo, e ninguém percebe muito bem porquê.
Assim se passam sensivelmente cem páginas do livro. Cem páginas a coçar a cabeça, a tentar perceber porque é que tantas pessoas gostaram do livro. As particularidades dos animais chegam a ser exaustivas e sem qualquer interesse, para além de nem sequer concordar muito com as opiniões do autor sobre a sociologia dos bichinhos. Quanto à religião, que até é um tema sobre o qual gosto de ler, parece cair um bocado de pára-quedas e nem sequer chega a pousar no chão. Ficamos sem perceber para que serviu quase metade do livro todo.
O que vale é que a escrita é bastante simples e acessível, por isso apesar de não ser muito interessante lê-se bem.
Entretanto, por questões políticas, o pai de Pi vende o zoo e a família decide ir viver para o Canadá. Mas a tragédia acontece quando o navio que os transporta afunda. Pi consegue safar-se num barco salva-vidas, acompanhado de um orangotango, uma hiena, uma zebra e um magnífico tigre (que é, como qualquer pessoa já percebeu, o animal mais importante deste maralhal todo). Ao longo das semanas, Pi vai-se safando com uns truques e inteligência de sobrevivente, e de vez em quando lá acontecem uns sobressaltos que abanam a situação dele.
E assim chegamos a duzentas páginas do livro. Desta vez, já não estou tão aborrecido com o livro. É interessante ler as provações de Pi no meio do mar. Sim, ainda me questiono porque raio acham o livro tão impressionante, mas já se percebe os traços de um clássico moderno. Uma espécie de O Velho e o Mar com mais divagações e mais fantasia. A história é muito original. Finalmente percebemos que existe muito simbolismo detrás de Pi, da sua história de sobrevivência, do tigre, do pequeno barco salva-vidas no meio da vastidão do oceano, e é um aspecto principal do livro. Faz-nos pensar um pouco na pequenez daquele barquinho, e isso é bonito de se ler. De qualquer forma, o livro está quase a acabar e não estou nada arrebatado. Sim, reconhecemos que o livro é muito bom, cheio de significado intemporal, mas não entretém muito.
Fico com a sensação de que o livro não começa muito bem, até um bocado confuso, sem ideias bem definidas do que é suposto ser. Parece que estamos perante uma introdução um bocado forçada e que não interessa muito para a história, mas alguma coisa tinha de abrir o livro. Com o avançar da história, parece que o escritor chega finalmente onde quer chegar, com os objectivos mais concretos, e o leitor consegue finalmente perceber algum sentido nesta quase-fábula sobre sobrevivência.
Até que chegamos às últimas cem páginas do livro. E as palavras faltam.
Não quero adiantar muito mais sobre a história, porque isso seria estragar a surpresa que eu próprio tive (graças a Deus fugi do filme). Não estou sequer a falar de grandes revelações ou conclusões. É muito mais profundo do que isso.
É só quando chegamos às últimas páginas do livro que percebemos o quão errados estivémos. Sinto um embaraço enorme por ter sido demasiado crítico. Devia saber melhor. Mas o escritor sabia isso, sabia que eu ia ser teimoso. É por isso que me obrigou a ler duzentas páginas de devaneios. É por isso que no fim dá aquilo que quero. Nós somos tal e qual o jornalista desta história: aturamos conversa da chacha, reviramos os olhos de vez em quando, insistimos em saber a verdade, e no fim ele faz-nos a vontade: ele vai para a frente, até ao fim de tudo (e até aí se distingue de outros livros, que preferem deixar o leitor a divagar nas suas próprias reflexões). E quando sabemos tudo, baixamos os olhos, derrotados pela nossa própria arrogância.
E tudo muda. De repente, a história sem sentido das religiões, as aborrecidas teses sobre zoologia, tudo cresce e ganha um novo sentido. Não, não é bem novo, porque esteve sempre lá. Nós é que pensámos que éramos mais espertos.
Chegamos à última página. Quero chorar com as últimas palavras, e sinceramente nem sei bem de onde vem esta emoção toda. Só há uma coisa a fazer: voltar ao início e reler o livro, porque uma segunda leitura é mesmo obrigatória. E talvez não nos faça acreditar em Deus, mas está perto.
É um livro especial. Mesmo, muito especial. Mas é preciso ler até ao fim para perceber o verdadeiro simbolismo da Vida de Pi. Se eu tivesse parado a meio, teria achado o livro aborrecido e nunca teria percebido o sentido disso. Teria sido ignorante. É incrível como poucas páginas finais conseguem tornar todo o livro arrebatador.
3 comentários:
Foi um dos poucos livros que me chocaram.
Ou seja, corroboro bastante da tua opinião. A história por vezes perde algum sentido e por diversas vezes chega a ser monótona. No entanto desde o principio que o que Pi nos narrava me parecia ser uma metáfora a qualquer coisa, no entanto estava longe de imaginar ao quê, e isso foi chocante quando me apercebi do verdadeiro significado.
Já li todas as obras de Martel, são semelhantes, mas nunca mais conseguiu atingir o brilhantismo que atinge em a Vida de Pi.
Se puderes vê o filme, o realizador consegue captar a fábula, porém o fim não é tão claro como nos deparamos no livro.
É de facto brilhante como o escritor brinca com o leitor.
Oferece-nos uma bonita fábula clássica, mas ao mesmo tempo aborrece-nos, confunde-nos, e força o próprio leitor a pensar como os jornalistas no fim da história. A mim pelo menos conseguiu! Que conclusão marcante.
Entretanto já vi o filme. É relativamente fiel ao livro, mas tens razão, o impacto é completamente diferente. Não senti aquele "choque", nem a emoção, e achei que a lição final (que não é o significado da metáfora, mas sim a importância da metáfora) é apenas um apontamento final, enquanto no livro é mesmo algo que se afunda em ti.
Fiquei curiosa! Vi o filme e não achei que fosse nada de mais, pelo que o livro nunca me despertou muito a atenção. Mas acho que vou considerar...
Enviar um comentário