segunda-feira, 23 de julho de 2018

Um Gentleman em Moscovo, de Amor Towles


Vyshinski: Qual é a sua profissão?
Rostov: Um cavalheiro não tem profissão
Vyshinski: Muito bem. Então, como é que ocupa o seu tempo?
Rostov: Com jantares, conversas, leituras, reflexão. O habitual.
Vyshinski: E escreve poesia?
Rostov: Já me aconteceu esgrimir a pena, sim.

Por causa de um poema, um tribunal bolchevique condena o conde Aleksandr Rostov a prisão domiciliária. Ficará retido, por tempo indeterminado, no sumptuoso Hotel Metropol. A prisão pode ser dourada. Mas é uma prisão.
Estamos em Junho de 1922. Despejado da sua luxuosa suíte, o conde é confinado a um quarto no sótão, iluminado por uma janela do tamanho de um tabuleiro de xadrez. É a partir dali que observa a dramática transformação da Rússia. Vê com tristeza os magníficos salões do hotel, antes animados por bailes de gala, serem agora esmagados pelas pesadas botas dos camaradas proletários. E vê-se obrigado a negociar a sua sobrevivência, num ambiente subitamente hostil.
Aos poucos, porém, o aristocrata descobre aliados no hotel, com quem partilha o seu amor pelo belo - e a defesa de valores morais que nenhuma ideologia poderá vergar. Faz-se amigo do chef, dos porteiros, do barbeiro, do encarregado da garrafeira, e com eles conspira para devolver ao Metropol a sua antiga e majestosa glória. Ao mesmo tempo, toma sob a sua proteção uma menina desamparada, a quem provará que a vida não se resume à luta de classes.
Amor Towles oferece-nos um dos mais requintados (e melancólicos) romances dos últimos anos.
Uma obra épica, habitada por uma galeria de personagens inesquecíveis e servida por uma escrita de uma elegância cada vez mais rara nas letras contemporâneas.

Melhor Livro do Ano
Chicago TribuneWashington PostPhiladelphia InquirerSan Francisco Chronicle, NPR.


Várias vezes falo sobre expectativas. Não querendo dar a entender que sou uma pessoa demasiado repetitiva ou incapaz de outras divagações, a verdade é que a expectativa é uma grande constante da condição humana. Não há momento das nossas vidas, desde um encontro romântico a um simples dia de trabalho, ao sucesso dos filhos, ao sabor do pão que vamos comer, que não seja antecipado por esse sentimento de promessa, seja ela boa ou má. Todas essas experiências serão ditadas, antes de mais, pela expectativa que lhes é reservada.
Não querendo comparar uma leitura a uma experiência de vida marcante (e, ainda assim, pode marcar-nos ao ponto de mudar as nossas expectativas de futuro), é também marcada pela expectativa e esta tem o poder de tornar um livro algo prazeroso ou algo completamente abominável. Algumas vezes, a promessa é grande: vemos um best-seller com críticas fenomenais e esperamos que seja uma leitura emocionante. E o livro até pode ser muito bom: mas a nossa expectativa era tão elevada que acabamos por nos sentir defraudados.
Depois, há livros para os quais reservamos poucas expectativas. Foi o meu caso neste Um Gentleman em Moscovo. A encadernação está muito gira e é uma surpresa encontrar hoje em dia livros novos a receber este tipo de tratamento (parabéns D. Quixote); os críticos têm reverenciado o livro. Só coisas boas. Ainda assim, não posso dizer que estivesse com grandes esperanças. Em parte, acuso a sinopse na contracapa, que explora mesmo muito mal o que o livro é. Mas ainda bem que assim é, pois vi-me perante uma leitura verdadeiramente deliciosa que me agarrou até à última página noite adentro.

O Conde Aleksandr Rostov é um aristocrata, um exemplo de etiqueta, tradição e gosto pelo charme e elegância que caracterizava a Nobreza. Após a Revolução na Rússia no início do séc. XX, é preso por tempo indeterminado no luxuoso Hotel Metropol. E isso é tudo o que precisam de saber. O livro desenrola-se ao longo dos anos, das décadas, descobrindo pequenas aventuras pelas quais o Conde e o próprio Hotel passam, e encontros com personagens únicas que vão marcando a nova vida do Conde neste mundo dentro do mundo.

Todo o livro é encantador, escrito com uma jovialidade que contrasta com a dura realidade da Rússia na época. O Conde é uma personagem sempre educada, conhecedora das boas maneiras, e facilmente somos atraídos pela sua disposição. De capítulo a capítulo, sem aviso e sem momentos aborrecidos, somos surpreendidos com pequenos gestos que nos provam que há sempre mais a esperar desta leitura, como uma gaveta secreta ou uma história por contar. E é disso que este livro é feito: os pequenos gestos, os encontros, o acumular de pequenas experiências que tornam o Metropol uma existência digna de ser lembrada.

O contexto histórico é, claro, importantíssimo. O nosso Conde, resguardado na sua prisão luxuosa, sofre apenas indirectamente os efeitos da nova Rússia. E mesmo nisso o livro é uma leitura maravilhosa, a fazer lembrar o estilo de O Rapaz de Pijama às Riscas ou A Rapariga que Roubava Livros. A realidade, brutal, é apenas discretamente apresentada, com a ingenuidade inerente àqueles que não a sentem na pele. No caso do nosso Gentleman, apenas percebemos o efeito da História pelas pessoas que passam no Metropol, as mudanças na gerência e nos costumes, nos zunzuns dos corredores, mas sem nunca presenciar verdadeiramente os horrores que se viveram. Ainda assim, lá estão esses pesadelos, arranhando a porta do hotel. E se o nosso Conde é sempre uma personagem tão convidativa, será talvez porque esta “prisão” conservou a sua aura, alienada dos sofrimentos nas ruas do seu país (que, ao longo das décadas, é cada vez menos seu).

É um livro muito descontraído. Apesar das suas 500 páginas, lê-se num ápice. A sua grande proeza é ser capaz de ser descontraído e elegante ao mesmo tempo. O escritor prova que uma escrita apurada, rica, de qualidade digna de clássicos, pode ser uma escrita descontraída, sem presunções. E se não nomeio desde já este livro como um clássico da Literatura Moderna, será talvez pelo seu estilo talvez demasiado propagandista (claramente defensor das aristocracias do séc. XIX), que várias vezes se torna tão evidente que quebrou um pouco a minha leitura.


Tenho muita, muita dificuldade em classificar o livro. Quatro estrelas ou cinco estrelas? A verdade é que foi uma leitura soberba e com uma característica que, para mim, distingue os grandes livros: faz-nos querer reler. Por isso, talvez merecesse cinco estrelas. Não obstante, guardarei as cinco estrelas para aqueles livros nos quais não encontro qualquer falha, qualquer que ela seja. O livro peca, como disse, por um saudosimo dos tempos da aristocracia que, em certos momentos, soa a alguma propaganda, e apesar de ser suposto simpatizarmos com esse estilo de vida creio que era desnecessária. A propaganda pode ser dissimulada no enredo, inteligente, e é-lo a maior parte das vezes. Mas nem sempre. Para além disso, várias vezes o narrador da história quebrou a minha dedicação à leitura, e aqui encontro a maior falha deste livro. Frequentemente varia entre um narrador não participante, contando a história como se fosse um mero observador omnisciente e omnipresente, e um narrador que aparenta fazer parte do próprio hotel, como se ele próprio lá vivesse. O conflito é grande, a dúvida interrompe o ritmo da leitura e chegados ao fim conclui-se que estas variações no estilo foram completamente inúteis e nada acrescentam à qualidade da escrita.

Não me vejo a adquirir os restantes livros do autor na sua edição original (não fiquei fã a esse ponto), mas espero sinceramente que a D. Quixote decida editar os seus outros livros. Um Gentleman em Moscovo é um livro soberbo, que na sua postura sempre elegante conquistará os leitores portugueses este ano.


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