quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Memória de Elefante, de António Lobo Antunes

Não vale a pena esconder que não comprei este livro apenas pela minha "curiosidade" em conhecer a obra de Lobo Antunes. Comprei o livro acima de tudo pela edição. Ler António Lobo Antunes era um interesse que foi alimentado com essa aquisição, não antes disso.

Escrito em 1979, "Memória de Elefante", juntamente com "Os Cus de Judas" (escrito no mesmo ano) figuraram juntos numa edição limitada numerada e autografada pelo autor (num conjunto de 500 packs). Curiosidade: o meu número é o 42. As capas são bastante bonitas, a qualidade do papel é impecável, só restava saber o que escondiam as suas páginas.

Há umas poucas noites espequei-me à frente das minhas estantes, cheias de livros por ler. Peguei, num acto cego, neste livro. Não escondo que adorei o que me foi apresentado.

Este livro não se trata de um enredo em busca de uma solução, mas sim de um homem em busca de um sentido. O psiquiatra (irónico sem dúvida o seu emprego) é um homem profundamente deprimido, recém-separado da mulher e das duas filhas, vivendo numa Lisboa pós-fascista e com a Guerra do Ultramar bem presente na sua memória. Tudo isso faz dele não só uma pessoa extremamente observadora como alguém capaz de se afogar a si próprio num monte de dúvidas existenciais ao questionar a realidade, a lucidez, o sentido dos seus actos.
Se formos a contar os dias que passam no livro, uma semana é demasiado. É um livro pequeno, que se passa em pouco tempo, que se debruça totalmente nas divagações do psiquiatra, no pouco que o seu quotidiano tem para oferecer e no muito que ele próprio é capaz de captar. Porque é isso mesmo a "memória de elefante": alguém que consegue lembrar-se de tudo, adquirir facilmente informações à sua volta e guardá-las. Isso pode ser uma mais valia para muitos, mas para este psiquiatra é a causa da sua desgraça.

Fiquei absolutamente admirado com a obra. Não esperava encontrar o que encontrei, nem de perto nem de longe.
António Lobo Antunes tem uma escrita extremamente densa. Não é para todos. Já ouvi muitos queixarem-se não da densidade do texto, mas de como o autor se aproveita disso para se gabar da "capacidade de escrever". Não digo que, como pessoa, não aconteça isso, mas o que encontrei foi um tipo de escrita bastante denso mas com todo o sentido. Ultimamente aparecem autores portugueses que "copiam" a escrita de Lobo Antunes, contudo facilmente caem na armadilha de se contradizerem constantemente, ou utilizarem vocabulário e expressões que, no fim de contas, não têm qualquer sentido nem ligação com o que estamos a ler. Não foi isso que encontrei em "Memória de Elefante". Encontrei, sim, um tipo de escrita bastante difícil de seguir, que talvez faça a maioria dos leitores perder-se ou cansar-se antes do parágrafo acabar, mas que a mim me cativou absolutamente. Por muito difícil que o vocabulário fosse, nenhuma expressão me pareceu fora do contexto, tudo teve um sentido de estar escrito, e a maneira como o texto corre, com bastantes apartes entre vírgulas, bastantes apartes próprios de uma personagem observadora, nunca me fizeram perder o fio à meada. Aliás, apenas contribuíram para me "encher" completamente as medidas, encontrando aqui uma escrita digna de explorar não só uma personagem mas obras inteiras. Para mim, um leitor que gosta de ir analisando o livro e as situações descritas, que gosta de ler uma frase e tentar perceber o que o escritor quer dizer com aquilo, esta foi a escrita mais compensadora que poderia encontrar.

Para o tipo de tema que é discutido neste livro, esse existencialismo todo, um vórtice de observações que arrastam o pobre psiquiatra, apenas uma escrita assim alguma vez conseguiria concretizá-lo.

"Memória de Elefante" é, também, curioso pelo seu carácter autobiográfico. E António Lobo Antunes deixa transparecer isso através da maneira como o narrador vai mudando, originalmente na terceira pessoa mas muitas vezes desviando-se para a primeira pessoa, entrando na mente do psiquiatra como se fossem um só. Cativante essas passagens. É uma técnica pelos vistos frequente nos seus livros, que pessoalmente gostei de encontrar aqui.

Finalmente, o que acima de tudo me deixou totalmente ligado ao espírito melancólico, dramático, do livro: Lisboa. Eu próprio sou um observador, um divagante, tal como o psiquiatra, e delicio-me a percorrer as ruas de Lisboa, quer pelas praças e avenidas como pelas pequenas ruas que entram directamente no coração da cidade. E Lisboa não é uma cidade alegre: é uma cidade nostálgica, quase melancólica, muito boémia. Eu encontrei essa Lisboa nesse livro! Nunca vi alguém transmitir tão bem o espírito de uma cidade como António Lobo Antunes aqui fez. E a Lisboa que ele observa é uma que eu encontro, com a qual eu sonho, na qual me identifico. Isso deixou-me irremediavelmente cativado.

Não posso aconselhar "Memória de Elefante" a toda a gente devido ao seu estilo de escrita. Embora seja bastante lido, não deixa de ser demasiado denso, e facilmente nos perdemos. Para além disso, é um livro muito melancólico, nada alegre, e para muitos isso pode ser ainda menos animador. É difícil de recomendar. Por outro lado... Há poucos assim. A partir de agora, vou ler as obras de António Lobo Antunes, pois quero mais desta escrita, quero mais deste sentimento.




(P.S.: só não dou as 5 estrelas completas porque ainda não percebi o que é que D. João IV tem a ver com a Praça da Figueira... Estas pequenas coisas deixam-nos cépticos para o resto do livro!)

10 comentários:

armando sousa disse...

Memória de Elefante é isso mesmo, um livro envolvente, embora difícil, mas Lobo Antunes é isso mesmo, difícil e envolvente... um velho camarada de armas que respeito e aceito sem reservas.
Armando Sousa

Eliza disse...

Fantástico, gostei muito da opinião. Nunca li Lobo Antunes antes, estou muitíssimo curiosa :) Abriu-me por assim dizer o apetite.

Pedro disse...

Armando Sousa,
Difícil e envolvente sem dúvida, uma combinação que me enche totalmente como leitor!
Nunca pensei ir ler António Lobo Antunes e gostar tanto, isso posso dizer!

Eliza,
obrigado! E ainda bem que consegui "abrir esse apetite", pois embora não seja um livro fácil de ler não deixa de ser uma obra a ser lida.

Boas leituras

José Alexandre Ramos disse...

Pedro

Recebeu um e-mail meu? Gostaria de citar este seu artigo no site sobre António Lobo Antunes (ala.nletras.com). Caso se oponha por favor responda-me. Obrigado.

djamb disse...

António Lobo Antunes não é fácil de ler, mas é muito compensatório! :)

Pedro disse...

José,
já entrámos em contacto, portanto sem problemas ;) (e muito obrigado, já vi a publicação!)

Djamb,
podes crer! E olha que, ao contrário de outros, nunca perdi o fio à meada (de repente lembro-me de Marguerite Yourcenar... Grande bocejo...)

susemad disse...

Do autor li "O Arquipélago da Insónia" e para primeira incursão na sua obra posso dizer que gostei bastante (deixo aqui a minha opinião: http://tonsdeazul.blogspot.com/2009/03/ha-momentos-em-que-me-sinto-tao-so.html). E sim concordo que este também não foi uma leitura fácil.
Gostava de voltar a ler algo mais. Até já tenho algumas sugestões, mas ainda não me decidi por qual. Esta tua opinião até me animou para este. Quem sabe... :)
Ah! E Esta edição é lindíssima!

Pedro disse...

Eu quero ler a sua obra cronologicamente (dizem que vai diminuindo de qualidade ao longo do tempo...). Este "Memória de Elefante" foi uma leitura e pêras para mim, e creio que também vais gostar. Para leitores como nós por vezes sabe mesmo bem ler algo assim.

susemad disse...

Já me disseram isso várias vezes! Acho que fazes bem em começar assim! Também costumo fazer isso com certos autores.
:)

Clydes disse...

Excelente resumo e opinião sobre o livro; incluí na minha biblioteca. Um grande abraço do Euclides, Brasil.

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